terça-feira, 22 de dezembro de 2015

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A floricultura abre as sete. As seis, meu despertador toca e eu me levanto da cama, encarando o meu quadro de lembretes. Preciso dele porque quando eu tinha dezessete anos o ônibus em que eu estava colidiu com um caminhão. Pelo menos eu precisava. Estou melhor agora. Por isso o quadro está quase vazio, com dois lembretes escritos com minha letra torta: "Não esqueça de regar as flores" e "levar as chaves do armário".
As flores estão em pequenos vasos coloridos na janela do quarto e o regador está sobre a minha escrivania, então eu o pego e encho com a água da torneira do banheiro, molhando as plantas. Depois disso, lavo o meu rosto. A água está gelada o que me lembra que preciso comprar um casaco novo quando sair da loja, vou precisar pois é véspera de natal.
Visto uma meia-calça grossa, um vestido de manga comprida azul escuro e botas de neve. O meu reflexo no espelho parece cansado e triste, mas eu me sinto especialmente feliz.
- Hoje é dia 24! - falo pra mim mesma, rodopiando pelo meu quarto até cair na minha cama ainda bagunçada e encarar o porta-retrato que está sobre o meu criado-mudo - Hoje é o dia que o meu amor volta para casa! - sorrio, olhando para a foto de um ano atrás, onde Nate morde minha bochecha.
De todas as coisas que esqueci desde o acidente, eu sei que nunca me esqueci dele. Lembro de acordar em um quarto de paredes brancas, com fios me ligando a máquina que me mantinha viva e eu não sabia o que eu estava fazendo ali e nem porque meu corpo doía tanto. Mas ele estava ali e eu sabia que se ele ainda segurava minha mão as coisas iam bem.
- Bom dia - ele falou, sorrindo ao ver que eu estava acordada - como sempre, dormindo de mais, minha bela adormecida.
O despertador toca mais uma vez, tirando-me das minhas memórias. O relógio marca seis e meia e eu pulo da cama pois estou atrasada.
Corro pelo corredor e noto que a porta do quarto de Ben está aberta. Ele é meu irmão gêmeo, mas não parecemos tantos. Quero dizer, fisicamente sim. Ele tem o mesmo cabelo cacheado que o meu, mas ele bebe de mais e costuma ir a festas e bares todas as noites.
- Benjamim! - eu grito
- Taylor! - ele grita de volta, levantando da cama assustado
- Eu esqueci de fazer seu café da manhã!
Ele ri. Parece estar de ressaca.
- Tudo bem, eu mesmo faço. Agora vai, você está atrasada.
Então ele entra no banheiro e eu volto a correr pelo corredor, abrindo a porta do apartamento e correndo até o elevador. Antes que eu possa apertar o botão lembro das chaves do armário e que estou sem um casaco. Volto correndo, e escorrego no tapete da entrada.
- BEEEEEEEEEEEEEN! - eu grito, ofegando no chão da sala
- Taylor? - ele aparece no batente do corredor, com o rosto cheio de creme de barbear - O que aconteceu?
- Chave. Casaco. - falo, tentando levantar, mas escorrego de novo e ele ri, caminhando até a cozinha e voltando com o meu sobretudo preto
- As chaves estão no bolso. - ele me segura e me coloca de pé - Agora corre! Existem pessoas esperando pra comprar na loja hoje! É véspera de natal!
Ben volta pro quarto, rindo, e eu corro novamente. Chego na floricultura as sete e dois, e a senhora Martins está parada na frente da porta de vidro, tentando acertar a chave.
- Bom dia! - falo, apressando-me para ajudá-la com as chaves
- Bom dia, querida. - ela sorri - Hoje será um dia e tanto!
Concordo, finalmente abrindo a porta. Dentro da loja está quente, então eu tiro meu casaco e pego o da senhora Martins também, levando-os para o fundo, onde os penduro e começo o meu trabalho.
Vou até a estufa e vejo como estão as plantas. Algumas floresceram durante a noite e agora enfeitam a estufa com suas cores.
Escuto o sino da porta anunciando o primeiro cliente e me apresso para pegar algumas da flores. Logo a loja estaria cheia, o natal era a data comemorativa que mais vendíamos depois do dia dos namorados e do dia das mães, e por isso sempre eramos a loja do bairro a fechar mais tarde.
Depois de atender alguns clientes, começo a sentir meu estomago embrulhar. Encosto no balcão, respirando fundo.
- Você está bem? - uma garota que estava na loja pergunta, apreensiva, e a senhora Martins se junta a ela - Você não quer descansar um pouco?
Nego com a cabeça;
- Estou bem, só estou um pouco - sou interrompida pelo meu próprio vômito. Felizmente, consigo correr até a lixeira - enjoada - termino, sentando no chão.
- Descanse um pouco, querida. Eu dou conta, okay? - a senhora Martins sorri, caminhando lentamente para pegar alguns girassóis para o moço de casaco vermelho. Sinto-me culpada por deixar uma senhora de quase setenta anos atender tantos clientes ao mesmo tempo, então recomponho-me e começo a montar buquês.
Fechamos a loja as cinco da tarde. Estou cansada, mas feliz por ter ajudado tantas pessoas a escolherem as flores certas. Vou até os fundos e pego meu sobretudo. Grudado na parede, atrás dele, há um lembrete "abra o armário embaixo do balcão". Franzo a testa, pois não lembro dele estar ali nos outros dias, mas vou até o balcão e me abaixo, encarando a porta de correr que está trancada. Pego a chave que está no bolso do meu sobretudo e abro o armário. Encontro um envelope amarelo.
- Senhora Martins? - a chamo, e ela olha pra mim sobre os óculos de armação redonda
- Sim?
- Você sabe algo sobre esse envelope? - pergunto, confusa
- Você o colocou aí antes de ontem, querida.
Não me lembro de tê-lo colocado ali. Nem sequer me lembro de um envelope amarelo. Pego-o e me levanto.
- Estou indo agora, okay? Feliz natal, nos vemos dia 26.
- Feliz natal, Taylor. - ela sorri pra mim - Não esqueça de checar os lembretes.
Concordo com a cabeça e saio da loja, o sino fazendo barulho quando abro a porta de vidro. Do lado de fora venta forte, e algumas pessoas comentam sobre uma tempestade, o que me lembra que esqueci de pedir para sair mais cedo para que eu pudesse comprar um casaco novo. Agora é tarde de mais, as lojas já estão fechadas. De qualquer jeito, não acho que vá chover.
Olho mais uma vez para o envelope e então eu o abro. Dentro dele há um cartão branco.
- Encontre Gigi no Café da Tia Bea as 17:20. Levar flores. - leio em voz alta, sem entender direito. Eu deveria ter lido enquanto ainda estava na floricultura, agora não tinha mais como levar flores. De qualquer jeito, eu pego o metrô das 17:10 e levo apenas cinco minutos até o Café da Tia Bea, onde encontro minha amiga sentada em uma das mesas, vestida com uma saia tubinho preta e um salto alto de quinze centímetros.
Sento em uma das cadeiras da mesa de madeira e ela sorri pra mim.
- Oi Tay! Como está se sentindo?
- Enjoada - respondo sem pensar e ela ri - Por que estamos aqui?
- Bom, nós duas sabíamos que você iria esquecer, então combinamos de estar aqui para te lembrar. - ela responde, entregando-me uma pasta
- Lembrar do que? - pergunto, ainda mais confusa, e ela apenas aponta para a pasta e bebe um gole de seu café com chantili.
Pego a pasta e a abro. Dentro encontro alguns exames médicos e ultrassons.
- O que... - continuo lendo os exames, há meu nome neles - Eu estou grávida?! - pergunto, sorrindo, e ela confirma com a cabeça, levantando da mesa pra me abraçar
- Ai meus deuses!  - eu a abraço de volta - Eu estou grávida! De quantos meses?!
- Três meses, Taylor. - ela ri - Três meses!
- O Nate sabe?
- Você vai contar pra ele hoje. - Gigi olha em seu celular - Bom, eu tenho que ir e você também. Você trouxe as flores?
- Não... Para que são as flores?
- Bom, dê um jeito de consegui-las e esteja no parque ao por do sol. Sério, Taylor, não se atrase. E cheque seu celular! Existem lembretes lá, sabia?
Despeço de minha amiga e vou em direção a estação de trem. Checo meu celular, onde encontro mais alguns lembretes: "Não coma nada gorduroso", "Separe gardênias", "Compre um casaco novo", "Buscar Nate no aeroporto as oito da noite". Suspiro. De todos, o único que eu me lembrava era da chegada de Nate. Eu devia ter um lembrete que me lembrasse de checar os lembretes.    
Pego o metrô novamente e desço na estação do parque. Enquanto caminho até lá encontro um senhor, ele está sentado em um banco de madeira e segura uma plaquinha e um buquê de gardênias. Na plaquinha estava escrito: "Taylor, não se esqueça das flores".
Aproximo-me dele.
- Olá? - falo, sorrindo um pouco sem graça - Posso pegar essas flores?
- Taylor? - ele pergunta e eu confirmo - Claro, um moço gentil pediu que eu as entregasse pra você.
- Muito obrigada! - ele me entrega as flores e eu sorrio. Vejo que o céu está ficando mais escuro e então eu me apresso. Colado nas árvores encontro vários lembretes, mas sem nada escrito nos mesmos. Os sigo até chegar em um espaço perto do lago, onde Nate me espera sentado. Quando o vejo, lembro de quando tínhamos dezesseis anos e combinamos que quando fossemos ter nossos filhos eu o contaria através de uma maçã.
Balanço a cabeça, e caminho até ele. Ele está sentado em uma toalha xadrez vermelha com branco, e sobre ela há uma cesta de comida e uma garrafa com água.
Ele se levanta e caminha até mim. Seu sorriso continua o mesmo do dia em que eu acordei naquele quarto, o mesmo do dia em que nos beijamos pela primeira vez.
- Por favor, não me diga que eu esqueci que tínhamos um encontro! - falo, abraçando-o - Eu pensava que tinha que te buscar no aeroporto as oito.
Ele ri, depositando um beijo em minha testa.
- E tinha. - ele me puxa pela mão - Mas eu resolvi te fazer uma surpresa. Você trouxe as flores?
Digo que sim e entrego as gardênias para ele, que as coloca na garrafa de vidro com água. Sentamos sobre a toalha e ele me conta como foi sua viagem enquanto comemos bolo de chocolate. É bom estar com ele de novo, tão bom que não percebo o tempo passando e quando dou por mim já é meia-noite e pessoas desejam feliz natal uma para as outras.
- Feliz natal, meu amor!
- Feliz natal - ele responde, beijando-me - Eu tenho um presente pra você.
Ele então me entrega uma pequena caixa dourada. Quando a abro, deparo-me com um colar prateado com pingente de flauta. Ele havia planejado tudo, as flores, cada detalhe. Ano passado, nessa mesma hora, eu estava apresentando meu primeiro concerto de flauta transversal. Apesar de não me lembrar direito de como foi, eu me lembro dele sentado na primeira fila, sorrindo para mim.
- É lindo - sorrio, passando o dedo sobre o pingente - Obrigada, meu amor.
Sinto meu celular vibrar no meu bolso e então o pego. É um lembrete. "Cheque o bolso esquerdo do casaco". Quando o faço. encontro uma maçã um tanto quanto pequena.
- Também tenho um presente pra você - digo e abro minha mão, mostrando-lhe a maçã.
Ele sorri e seus olhos brilham.
- Isso é? - ele olha da maçã pra mim, sem saber o que falar
- Sim, é sim - respondo, não conseguindo evitar de sorrir
- Você lembrou! - ele me abraça forte, fazendo com que eu deite e ele caia sobre mim, olhando-me
- Eu não poderia esquecer. Por nada. - eu o beijo - Existem certas coisas que nem os piores acidentes podem nos fazer esquecer. Nosso amor é uma delas.
Ele me beija mais uma vez, sorrindo.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

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O cabelo dela estava solto naquele dia e os cachos avermelhados caiam sobre seus olhos. Puxando as mangas da própria blusa de frio, subiu no cercado de tijolos laranjas da grama.
Ele a olhou, com um sorriso no rosto, puxando-a para um abraço. Mas quando a soltou, seu sorriso se desfez. Uma única lagrima escorria pela bochecha da garota.
- O que... – ele afastou uma mecha de cabelo do rosto dela – O que aconteceu?
Ela respirou fundo, outra lagrima escorrendo, seguindo o rastro da ultima que caíra.
- Eu sei que você só acredita no que vê... Mas eu to aqui, você ta me vendo, não ta? – ela fungou – Então acredita em mim quando digo que gosto de você de verdade e que eu faria qualquer coisa por você.
Ele apenas a observou, sem reação alguma.
- Você não vai acreditar em mim? – mais lagrimas escorriam – Eu to aqui, eu existo, acredita em mim.
- Eu acredito. – ele respondeu, secando as lagrimas dela com a manga da sua blusa de lã preta – Calma. Fica calma, louca. – ele sorriu de lado, brincando com a garota. Ela também sorriu, se esforçando pra secar as lágrimas que caiam.
As bochechas dela estavam coradas. Por causa do frio, ou por causa dele, ele não sabia. Tudo o que sabia é que via sinceridade naqueles olhos, e que cada detalhe dela inspirava inocência. Mesmo quando ela sorria com toda a malicia.
- Vem cá. – ele disse, colocando o braço em volta da cintura dela e depositando um beijo calmo nos lábios da garota – Eu vejo você, eu sinto você, eu posso tocar em você e eu acredito em você, está bem? – ela concordou com a cabeça – Agora pare de chorar, você fica ridícula chorando.
Ele a puxou para outro abraço. Esperando encontrar um sorriso quando a soltasse dessa vez.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

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Eu ainda lembro do frio que fazia naquela tarde. Eu havia esquecido minhas luvas e meus dedos pareciam congelar, mesmo eu não os tirando do bolso do meu moletom. Quando o sinal indicando o intervalo tocou, eu fui até a parte externa da escola porque sabia que ninguém estaria lá com aquele frio, e sentei nas escadas, observando os flocos de neve que caiam formando uma camada branca sobre a grama.
Fechei meus olhos e entrei em um outro mundo, costumava fazer isso as vezes. Não sei quanto tempo passou até eu sentir alguém tocar meu rosto.
- Ei - ouvi a voz dele e abri os olhos
- Oi - sorri - O que foi?
- Quero te falar uma coisa.
Arqueei uma das sobrancelhas, sentindo a curiosidade se acender dentro de mim igual meu cabelo costumava acender quando fazia sol. Minhas bochechas também coraram, mas preferia acreditar que isso era por causa do frio.
- O que? - perguntei
Ele me olhou e sorriu de lado, como se planejasse algo que ninguém pudesse saber.
- Ou você fica comigo ou eu mijo em você. - ele falou enquanto ria e eu acabei rindo também.
- Não acredito nisso! - falei em meio as risadas - Não quero que você mije em mim.
- Eu também não quero mijar em você, então...
- Tente de novo. - falei, rápido, antes que ele pudesse continuar a frase. As bochechas dele também estavam coradas.
Ele respirou fundo e pareceu pensar por um tempo, então abriu um sorriso e me olhou desafiador.
- Você não é a Ahri, mas estou preso no seu encanto.
Acabei rindo de novo.
- Okay, pare de tentar. Apenas feche os olhos.
Ele me olhou, já entendendo onde eu queria chegar, e fechou os olhos com um meio sorriso nos lábios.
Suspirei e tirei minhas mãos do bolso, sentindo-as gelar, e as coloquei no rosto dele. Ele estremeceu com o toque da minha pele gelada, mas não abriu os olhos, apenas colocou a própria mão em cima da minha, como se quisesse esquentá-las, e eu esperei um pouco sentindo a lã quente na minha pele.
Então me aproximei um pouco mais e o beijei. Um beijo calmo e não muito demorado. Ele só voltou a abrir os olhos quando nos separamos, mas continuou segurando minhas mãos.
- Pensei que você ia perguntar o que eu via, e então eu diria nada e você diria "esse é o meu mundo sem você". - ele disse, fitando-me.
- Aí não teria graça. - sorri e fechei um dos olhos, como fazia quando ria com vergonha.
- Okay, minha vez de novo. Feche os olhos.
Fechei meus olhos e apenas esperei ansiosamente pelo que viria em seguida. Ainda fazia frio, e a neve continuava caindo, mas minhas mãos já não estavam mais geladas como antes.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Corredores

Quando eu parava
tudo o que via eram pessoas
Preenchendo todos os corredores
contendo maldade em todo o seu ser

E entre todas as pessoas
havia vocês
Com as curvas dos cílios
e dedos inquietos, coloridos
E as voltas que o sorriso dá.

Quieta em meu silêncio
eu gostava de observar
A maldade que brilhava em vocês
era diferente daquela que enchia os demais
Era uma maldade quase que inocente
que me aquecia
e me fazia feliz

Por segundos
quando, em meio a discussões,
vocês riam entre si
E enquanto eu os observava
era como se por um instante
Eu também não fosse
apenas mais uma pessoa entre os corredores.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Meu anjo chora

Eu escuto o choro da inocência
entre as paredes pintadas de branco
Branco que por sua vez não traz paz
nem amor, nem felicidade
Apenas deixa que o habite ali
e arraste-se para longe
Longe de onde a maldade ainda reina
e em seu reinado lhe tira o pouco
E do pouco que se vai
ainda lhe resta uma fagulha
Mas a fagulha não é boa
ela se arrasta, se procria
Ela destrói
E o que te resta, pequeno anjo
é o teu choro que escuto
pois tua inocência agora pinta minhas paredes
E paredes não trazem paz
nem amor, nem felicidade
Apenas deixam que tu habites ali
e de tanto habita-las
Deixou de habitar a ti

segunda-feira, 27 de abril de 2015

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Fechei meus olhos, deixando que a música tomasse conta de mim. Senti as ondas sonoras passando pelo meu corpo, fazendo-me arrepiar. Longe de toda a confusão do show, o vento acariciava minha pele. Tirei meus sapatos, sentindo a grama molhada do parque sob meus pés. O gosto do álcool ainda estava vivo em minha boca, misturado com o adocicado do morango da batida. O cheiro de suor, maconha e álcool haviam grudado em minha pele. Abri os olhos, passando a mão pelo meu cabelo cacheado e ainda balançando no ritmo da musica. Ouvi um suspiro e olhei para o lado. Sentado perto de mim, estava ele: um cigarro na mão, mangas da blusa de frio dobradas e olhos escuros encarando o lago.
Observei a garrafa de vodca que estava encostada no banco onde ele sentava. Usei como um pretexto para me aproximar. Quando se tratava dele, eu não conseguia ser direta. Era como se houvesse uma barreira que me impedisse.
- Posso tomar um pouco? - apontei para a garrafa e ele afirmou com a cabeça, dando uma tragada no cigarro.
Encostei-me na árvore mais próxima, pegando a garrafa e dando um longo gole. Também encarei o lago. Refletia as luzes do parque, da cidade, do show.
- Por que você nunca me contou? - ele falou, olhando-me de lado. Senti como se estivesse em queda livre.
- Contei o que? - também o olhei. Incrivelmente, não estava chapado.
- Que gosta de mim. - ele deixou o cigarro de lado - Você nunca me disse. Mas eu sei. Seus olhos brilham quando olha pra mim.
Devem estar brilhando agora, como as luzes refletidas no lago. Pensei.
Sorri de lado, deslizando pelo tronco da árvore até sentar no chão.
- Eu não podia. - fiz uma pausa. Ele me encarava, sentado em um banquinho de pedra pintado de verde. - Não podia arriscar te contar e ouvir que já havia alguém na sua vida. Preferi ficar quieta... Mas eu também não podia simplesmente ficar longe de você. Por isso todos os pretextos. - dei outro longo gole na bebida. - Eu só...
- Quanta besteira. - ele me cortou - Eu não estaria aqui agora se houvesse outra na minha vida. Acontece que desde que você apareceu, tudo o que eu tenho feito se liga diretamente a você.
Senti minha pupila dilatar. A música havia mudado, era intensa, meu coração batia forte junto com cada solo de guitarra.
- E por que você nunca me contou? - fiquei de joelhos em sua frente, apoiando meus braços em suas coxas e o encarando nos olhos
- Eu não podia. - ele riu, fazendo-me rir também
- Gosto do seu sorriso.
- Eu sei.
Continuei o encarando.
- Sem pretextos dessa vez? - ele perguntou, arqueando uma das sobrancelhas e empurrando com o pé a garrafa de vodca para longe de mim.
Fiz que sim com a cabeça e ele depositou um beijo em minha testa.
- Espere ai... - falei, puxando ele mais pra perto - Você disse sem pretextos. Por que está beijando minha testa?
Ele riu e então depositou outro beijo em mim, dessa vez em meus lábios. Eu ainda podia sentir o gosto do álcool.

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Eu lembro que doía, olhar pra ele doía. Era algo que eu não podia explicar, a forma como ele me fazia sentir. Os olhos dele eram como uma tempestade, inundavam-me todas as vezes que nossos olhares se encontravam. Era calmo, parecia perdido em algum lugar. Sei que naquele dia, realmente estava perdido.
Percebi isso quando o vi, sentado em algum canto, olhando para os próprios pés. Usava uma blusa de frio que parecia um pouco grande para ele, as mangas tampavam as mãos, mas o sol brilhava intenso no céu e trazia calor como o abraço dele costumava fazer.
Não o abracei naquele dia. Apenas me sentei, não muito perto, e o observei, sentindo a dor que olhar pra ele causava.
- Ei - ele me olhou e desviou o olhar. Eu pude sentir minhas bochechas corarem
Arrastei-me para mais perto, controlada por uma necessidade estranha que eu sentia de estar. Apenas estar.
- Você desvia o olhar como se tivesse medo. - falei, começando a encarar meus próprios pés também.
- Talvez eu tenha medo. - ele respondeu, rápido
- Medo de que? - quis saber
- Medo de me apaixonar por você.
Meu coração parou por alguns segundos. A dor aumentando, a inquietação se formando dentro de mim, como se um buraco de minhoca se formasse em minha cabeça, fiquei em silencio por alguns segundos, ouvindo o som que meu corpo fazia, a respiração entrando em harmonia com a dele.
- Mas não seria ruim se eu também me apaixonasse por você. - finalmente respondi
- Não, não seria.
- Então não precisa ter medo.
Encarei-o. Vi quando ele sorriu ao ouvir o que eu dizia. A dor já não importava mais.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A luz de inverno.

Formando desenhos abstratos aos olhos, a pista de gelo estava marcada por finas linhas feitas pelos patins brancos. As sete da noite, com uma lua crescente brilhando entre algumas nuvens, que cismavam em se agrupar e manter atrás de si os pontinhos que deveriam iluminar o céu, e o vento cortante que fazia aquela semana, eu me sentei em frente ao garoto que esperava sua vez de patinar.
Ele me observou, com seus olhos grandes e atentos, e então fez menção de dizer alguma coisa, mas logo se aquietou. Fumaça saiu de sua boca em um suspiro sem graça, o calor entrando em contato com o clima gélido.
- Oi. - Falei. Sorri como sempre fazia ao cumprimentá-lo. Ele sorriu de volta e respondeu um oi mudo. Escutei o funcionário do local avisando para o grupo de jovens que estavam na pista que o tempo que eles tinham para patinar havia se esgotado. A pista ficou vazia. As risadas foram sumindo a medida que as pessoas caminhavam para o restaurante do estabelecimento, prontas para tomar chocolate quente e comer biscoitos de baunilha ou simplesmente tomar um bom caldo de carne com uma taça de vinho tinto.
Ele sorriu de novo, olhando-me corar. E então esticou os braços sobre a cabeça, espreguiçando-se, e esfregou as mãos antes de se levantar.
- Você vem? - ele colocou as mãos nos bolsos. Tão natural com tudo aquilo. Fitava-me como quem não esperava nada. O olhar dele sobre mim me apavorava. Fazia-me querer correr e me esconder em algum lugar onde não pudesse ser encontrada.
Fiz que sim com a cabeça e também me levantei. Segui-o até onde o funcionário estava e o observei pedir dois ingressos. Murmurei um trinta e cinco, sem muita empolgação, quando ele perguntou qual era o numero do meu calçado, e agradeci quando ele me entregou um par de patins pequenos comparado com o que ele segurava para si.
Sentamos no banco em frente à pista e calçamos os patins em silencio.
Ele, sempre um passo a frente de mim, terminou de amarrar seus cadarços e se levantou. Parecia já ter feito aquilo muitas vezes. E já o tinha, de fato.
- Onde estão os seus amigos? - perguntei
- Não estão aqui. - a forma que ele falava não soava rude. Ele deslizou sobre o chão de gelo como quem andava sobre as nuvens.
Respirei fundo e fiz meu último laço com muito cuidado. Não por medo de que meus cadarços pudessem desamar e me fizessem cair, mas sim querendo adiar o momento que eu saberia que viria em breve. Como se eu não conhecesse o final daquela história.
Levantei, mantendo meu apoio na grade ao redor da pista. Minhas pernas bambeavam, o gelo escorregava mais do que eu poderia imaginar. Arraste um pé de cada vez, devagar, quantas vezes aquela cena havia se repetido?
- Você quer ajuda? - ele perguntou, rindo da minha falta de jeito, e patinou até mim com uma suavidade que eu não poderia imaginar que ele teria.
Balancei minha cabeça negativamente, fazendo meus cachos se agitarem, disse que eu estava bem, que não precisava, mas ele já estava ali e segurava meu braço, puxando-me de vagar, tentando me manter estável, tão perto que eu podia sentir sua respiração quente em minha pele, seu toque me fazendo estremecer.
Ele aumentava o passo, conduzindo-me junto com ele. Meus pés deslizavam por vontade própria, meus patins deixando suas próprias linhas finas no chão, fazendo seus próprios desenhos abstratos, marcando sua própria história. Nós íamos rápido, eu não poderia parar aquilo, ainda sentia minhas pernas bambearem. Pela proximidade dos corpos, meu coração batia forte.
- Eu vou te soltar, abra os braços e continue deslizando. - ele passou a mão para a minha cintura e eu pude sentir o arrepio que se estendeu por toda minha coluna, e então, empurrou-me para frente, dando impulso para que eu continuasse a patinar.
Eu deslizei por alguns segundos. O vento arranhando o meu rosto, um pouco mais gelado do que antes, fazendo meu cabelo se agitar e seguir seu próprio ritmo.
Olhei para trás. Ele me encarava com um meio sorriso no rosto. Perdi meu equilíbrio dentro daquele olhar. Antes que o chão pudesse me receber, ele segurou minha mão.
Caímos juntos sobre a pista de gelo. As risadas voltaram para aquele lugar, dessa vez, nossas.
- Ei. - sentando sobre o gelo, ele me chamou - Pegue.
Usei meus cotovelos para me sentar. No meio de nós dois, entre as linhas formadas pelos patins de alguém, uma flor amarela crescia. Tinha o cheiro adocicado de mel e todo o mistério que podia ter uma flor de inverno, no meio de uma pista de patinação, criada sobre um lago congelado.
Ele a colheu e estendeu em minha direção. Segurei-a entre os meus dedos, intrigada de mais para falar qualquer coisa.
- A propósito, seu nariz está sangrando.
Uma gota de sangue escorreu por minha pele e pingou no chão. Tudo se escureceu, olhei para o céu, confusa, agora as nuvens escondiam também a meia-lua e todo o resto se esvaía para longe de mim...
O vermelho tingia o branco aos poucos, pingo por pingo, e entre as pétalas amarelas de um momento de luz e os olhos curiosos do garoto, eu acordei.
O relógio marcava cinco horas e alguns minutos da manhã. Entrava pela janela um vento frio e cortante, e entre as cobertas eu me encolhia mais e mais. Aos próximos minutos do dia, o sol se lançava fraco, derretendo a neve que se formara de noite. Em minha cintura eu ainda podia sentir o arrepio e o estremecer do meu corpo a cada toque... E em minha mão eu ainda segurava uma flor amarela.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os Herdeiros de Summoner's Rift

A garota mancava pela selva o mais rápido que sua perna machucada permitia. Apoiava-se na espada em forma de crescente de sua mãe, tentando em vão buscar alguma forma de manter-se em pé. Ouviu barulho de água e caminhou em direção ao mesmo, deparando-se com um rio. Ajoelhou-se sobre a grama que crescia em volta da corrente e encarou seu reflexo na água não tão pura. Seu rosto estava marcado por recém-cicatrizes e um fio de sangue escorria de sua boca e nariz. Os cachos platinados de seu cabelo mal alcançavam seu ombro em um emaranhado de nós e sujeira, mas o que mais chamava atenção em sua aparência era os olhos banhados pela luz da lua: a dor que havia neles podia tocar o mais frio dos corações. Juntou as mãos e usou-as para apanhar um pouco de água, lavando o rosto. O sol já sumia entre as montanhas e o uivo dos lobos se tornava mais alto. A lua erguia-se com todo o seu esplendor, brilhando em sua cor prateada. A garota encarou o céu.
-  Mãe - uma unica e solitária lágrima escorreu por sua bochecha - eles a mataram porque você a amava. Você disse que ela fora sua amiga até o final, apesar de tudo, e por isso iria valer a pena a luta. Mas eu não acredito nisso. Ela não acreditou em você, mesmo quando o nosso próprio povo tentou te matar, ela não acreditou em você. Ela se tornou sua inimiga! O nome dela era Leona, mãe, e a vida dela não valia o mesmo tanto que a sua.
Ela tossiu. Mais sangue escorreu de sua boca. Deitou-se sobre a grama, conseguia ver a lua refletindo no lago. Seus olhos se fecharam, por mais que ela lutasse contra isso, estava cansada, machucada e sozinha. Tresh coletaria sua alma no final de tudo, ela sabia.
O uivo dos lobos se tornou mais alto. Ouvia o barulho de algo se movendo entre as árvores, cada vez mais perto. Apertou sua mão contra o cabo da espada em forma de crescente. "Não estarei sozinha por muito mais tempo, mãe. Eu irei encontrá-la, para onde quer que você tenha ido."
Abriu os olhos uma última vez. Viu a sombra de alguém, o machado erguido pronto para terminar o serviço que havia começado mais cedo. Fechou os olhos e esperou pela dor final, mas tudo o que chegara fora o som de aço contra aço e uma forte luz.
Era como se o sol estivesse nascendo mais uma vez. Calor, era isso que ela sentia. Calor e uma onda de sentimentos que não podia descrever. Ao seu lado, o garoto segurava o escudo dos solari. Sua armadura estava desgastada e cheia de arranhões, e de um corte em sua bochecha escorria sangue, mas mesmo assim, ele sorria.
Perto dele havia o corpo de um homem, com um machado pendendo de sua mão e uma espada dourada atravessando seu peito. Seu sangue escorria pela grama até a água, tingindo o rio de vermelho.
- Cria da Lua. - o garoto falou, puxando-a para seu colo
- Cria do Sol. - ela rebateu, fraca - Pensei que havia voltado para seu povo.
- Nosso povo. - ele respondeu - Mas eu não podia deixá-la.
Um leve sorriso surgiu nos lábios da garota.
- Eu não entendo porque voltou por mim. Eu não merecia.
Ele passou a mão pelo cabelo da garota, sentindo os cachos que não haviam sido desmanchados pela batalha.
- Sua mãe voltou pela minha, depois de tudo. Por que eu não voltaria por você?
- Minha mãe - a garota tossiu, sentia dor em todas as partes de seu corpo e já não conseguia mais mexer sua perna machucada - minha mãe amava Leona. Sempre amou.
- Minha mãe também amava Diana. Ela seria capaz de fazer tudo pelo escarnio da lua. - ele suspirou, acariciando o rosto da garota - E eu amo você. Você é o meu legado.
A garota fechou os olhos.
- Devo me despedir...
- Não - ele a puxou para mais perto de si, depositando um beijo em seus lábios pálidos - Não diga adeus. Olhe para mim. - a garota parecia deixar-se levar - olhe para mim, por favor. Não diga adeus, não diga adeus.
Ela soltou o cabo da espada e juntou todas as suas forças para colocar sua mão no rosto do garoto. O calor que ela sentia ao tocá-lo... O calor a fazia se sentir bem. Ela queria se entregar aquela sensação.
Abriu os olhos que voltaram a se fechar lentamente. O suficiente para que ele pudesse ver que os olhos dela não refletiam mais dor, apenas o leve brilho da lua.
- Isto é um adeus - ela se esforçou para falar - estou deixando que o calor me leve.
Ela sorriu, um sorriso doce e sincero, e então deixou que o calor lhe envolvesse por completo enquanto ele a abraçava forte e lagrimas quentes escorriam por sua bochecha.