quarta-feira, 15 de abril de 2015

A luz de inverno.

Formando desenhos abstratos aos olhos, a pista de gelo estava marcada por finas linhas feitas pelos patins brancos. As sete da noite, com uma lua crescente brilhando entre algumas nuvens, que cismavam em se agrupar e manter atrás de si os pontinhos que deveriam iluminar o céu, e o vento cortante que fazia aquela semana, eu me sentei em frente ao garoto que esperava sua vez de patinar.
Ele me observou, com seus olhos grandes e atentos, e então fez menção de dizer alguma coisa, mas logo se aquietou. Fumaça saiu de sua boca em um suspiro sem graça, o calor entrando em contato com o clima gélido.
- Oi. - Falei. Sorri como sempre fazia ao cumprimentá-lo. Ele sorriu de volta e respondeu um oi mudo. Escutei o funcionário do local avisando para o grupo de jovens que estavam na pista que o tempo que eles tinham para patinar havia se esgotado. A pista ficou vazia. As risadas foram sumindo a medida que as pessoas caminhavam para o restaurante do estabelecimento, prontas para tomar chocolate quente e comer biscoitos de baunilha ou simplesmente tomar um bom caldo de carne com uma taça de vinho tinto.
Ele sorriu de novo, olhando-me corar. E então esticou os braços sobre a cabeça, espreguiçando-se, e esfregou as mãos antes de se levantar.
- Você vem? - ele colocou as mãos nos bolsos. Tão natural com tudo aquilo. Fitava-me como quem não esperava nada. O olhar dele sobre mim me apavorava. Fazia-me querer correr e me esconder em algum lugar onde não pudesse ser encontrada.
Fiz que sim com a cabeça e também me levantei. Segui-o até onde o funcionário estava e o observei pedir dois ingressos. Murmurei um trinta e cinco, sem muita empolgação, quando ele perguntou qual era o numero do meu calçado, e agradeci quando ele me entregou um par de patins pequenos comparado com o que ele segurava para si.
Sentamos no banco em frente à pista e calçamos os patins em silencio.
Ele, sempre um passo a frente de mim, terminou de amarrar seus cadarços e se levantou. Parecia já ter feito aquilo muitas vezes. E já o tinha, de fato.
- Onde estão os seus amigos? - perguntei
- Não estão aqui. - a forma que ele falava não soava rude. Ele deslizou sobre o chão de gelo como quem andava sobre as nuvens.
Respirei fundo e fiz meu último laço com muito cuidado. Não por medo de que meus cadarços pudessem desamar e me fizessem cair, mas sim querendo adiar o momento que eu saberia que viria em breve. Como se eu não conhecesse o final daquela história.
Levantei, mantendo meu apoio na grade ao redor da pista. Minhas pernas bambeavam, o gelo escorregava mais do que eu poderia imaginar. Arraste um pé de cada vez, devagar, quantas vezes aquela cena havia se repetido?
- Você quer ajuda? - ele perguntou, rindo da minha falta de jeito, e patinou até mim com uma suavidade que eu não poderia imaginar que ele teria.
Balancei minha cabeça negativamente, fazendo meus cachos se agitarem, disse que eu estava bem, que não precisava, mas ele já estava ali e segurava meu braço, puxando-me de vagar, tentando me manter estável, tão perto que eu podia sentir sua respiração quente em minha pele, seu toque me fazendo estremecer.
Ele aumentava o passo, conduzindo-me junto com ele. Meus pés deslizavam por vontade própria, meus patins deixando suas próprias linhas finas no chão, fazendo seus próprios desenhos abstratos, marcando sua própria história. Nós íamos rápido, eu não poderia parar aquilo, ainda sentia minhas pernas bambearem. Pela proximidade dos corpos, meu coração batia forte.
- Eu vou te soltar, abra os braços e continue deslizando. - ele passou a mão para a minha cintura e eu pude sentir o arrepio que se estendeu por toda minha coluna, e então, empurrou-me para frente, dando impulso para que eu continuasse a patinar.
Eu deslizei por alguns segundos. O vento arranhando o meu rosto, um pouco mais gelado do que antes, fazendo meu cabelo se agitar e seguir seu próprio ritmo.
Olhei para trás. Ele me encarava com um meio sorriso no rosto. Perdi meu equilíbrio dentro daquele olhar. Antes que o chão pudesse me receber, ele segurou minha mão.
Caímos juntos sobre a pista de gelo. As risadas voltaram para aquele lugar, dessa vez, nossas.
- Ei. - sentando sobre o gelo, ele me chamou - Pegue.
Usei meus cotovelos para me sentar. No meio de nós dois, entre as linhas formadas pelos patins de alguém, uma flor amarela crescia. Tinha o cheiro adocicado de mel e todo o mistério que podia ter uma flor de inverno, no meio de uma pista de patinação, criada sobre um lago congelado.
Ele a colheu e estendeu em minha direção. Segurei-a entre os meus dedos, intrigada de mais para falar qualquer coisa.
- A propósito, seu nariz está sangrando.
Uma gota de sangue escorreu por minha pele e pingou no chão. Tudo se escureceu, olhei para o céu, confusa, agora as nuvens escondiam também a meia-lua e todo o resto se esvaía para longe de mim...
O vermelho tingia o branco aos poucos, pingo por pingo, e entre as pétalas amarelas de um momento de luz e os olhos curiosos do garoto, eu acordei.
O relógio marcava cinco horas e alguns minutos da manhã. Entrava pela janela um vento frio e cortante, e entre as cobertas eu me encolhia mais e mais. Aos próximos minutos do dia, o sol se lançava fraco, derretendo a neve que se formara de noite. Em minha cintura eu ainda podia sentir o arrepio e o estremecer do meu corpo a cada toque... E em minha mão eu ainda segurava uma flor amarela.

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