segunda-feira, 27 de abril de 2015

...

Fechei meus olhos, deixando que a música tomasse conta de mim. Senti as ondas sonoras passando pelo meu corpo, fazendo-me arrepiar. Longe de toda a confusão do show, o vento acariciava minha pele. Tirei meus sapatos, sentindo a grama molhada do parque sob meus pés. O gosto do álcool ainda estava vivo em minha boca, misturado com o adocicado do morango da batida. O cheiro de suor, maconha e álcool haviam grudado em minha pele. Abri os olhos, passando a mão pelo meu cabelo cacheado e ainda balançando no ritmo da musica. Ouvi um suspiro e olhei para o lado. Sentado perto de mim, estava ele: um cigarro na mão, mangas da blusa de frio dobradas e olhos escuros encarando o lago.
Observei a garrafa de vodca que estava encostada no banco onde ele sentava. Usei como um pretexto para me aproximar. Quando se tratava dele, eu não conseguia ser direta. Era como se houvesse uma barreira que me impedisse.
- Posso tomar um pouco? - apontei para a garrafa e ele afirmou com a cabeça, dando uma tragada no cigarro.
Encostei-me na árvore mais próxima, pegando a garrafa e dando um longo gole. Também encarei o lago. Refletia as luzes do parque, da cidade, do show.
- Por que você nunca me contou? - ele falou, olhando-me de lado. Senti como se estivesse em queda livre.
- Contei o que? - também o olhei. Incrivelmente, não estava chapado.
- Que gosta de mim. - ele deixou o cigarro de lado - Você nunca me disse. Mas eu sei. Seus olhos brilham quando olha pra mim.
Devem estar brilhando agora, como as luzes refletidas no lago. Pensei.
Sorri de lado, deslizando pelo tronco da árvore até sentar no chão.
- Eu não podia. - fiz uma pausa. Ele me encarava, sentado em um banquinho de pedra pintado de verde. - Não podia arriscar te contar e ouvir que já havia alguém na sua vida. Preferi ficar quieta... Mas eu também não podia simplesmente ficar longe de você. Por isso todos os pretextos. - dei outro longo gole na bebida. - Eu só...
- Quanta besteira. - ele me cortou - Eu não estaria aqui agora se houvesse outra na minha vida. Acontece que desde que você apareceu, tudo o que eu tenho feito se liga diretamente a você.
Senti minha pupila dilatar. A música havia mudado, era intensa, meu coração batia forte junto com cada solo de guitarra.
- E por que você nunca me contou? - fiquei de joelhos em sua frente, apoiando meus braços em suas coxas e o encarando nos olhos
- Eu não podia. - ele riu, fazendo-me rir também
- Gosto do seu sorriso.
- Eu sei.
Continuei o encarando.
- Sem pretextos dessa vez? - ele perguntou, arqueando uma das sobrancelhas e empurrando com o pé a garrafa de vodca para longe de mim.
Fiz que sim com a cabeça e ele depositou um beijo em minha testa.
- Espere ai... - falei, puxando ele mais pra perto - Você disse sem pretextos. Por que está beijando minha testa?
Ele riu e então depositou outro beijo em mim, dessa vez em meus lábios. Eu ainda podia sentir o gosto do álcool.

...

Eu lembro que doía, olhar pra ele doía. Era algo que eu não podia explicar, a forma como ele me fazia sentir. Os olhos dele eram como uma tempestade, inundavam-me todas as vezes que nossos olhares se encontravam. Era calmo, parecia perdido em algum lugar. Sei que naquele dia, realmente estava perdido.
Percebi isso quando o vi, sentado em algum canto, olhando para os próprios pés. Usava uma blusa de frio que parecia um pouco grande para ele, as mangas tampavam as mãos, mas o sol brilhava intenso no céu e trazia calor como o abraço dele costumava fazer.
Não o abracei naquele dia. Apenas me sentei, não muito perto, e o observei, sentindo a dor que olhar pra ele causava.
- Ei - ele me olhou e desviou o olhar. Eu pude sentir minhas bochechas corarem
Arrastei-me para mais perto, controlada por uma necessidade estranha que eu sentia de estar. Apenas estar.
- Você desvia o olhar como se tivesse medo. - falei, começando a encarar meus próprios pés também.
- Talvez eu tenha medo. - ele respondeu, rápido
- Medo de que? - quis saber
- Medo de me apaixonar por você.
Meu coração parou por alguns segundos. A dor aumentando, a inquietação se formando dentro de mim, como se um buraco de minhoca se formasse em minha cabeça, fiquei em silencio por alguns segundos, ouvindo o som que meu corpo fazia, a respiração entrando em harmonia com a dele.
- Mas não seria ruim se eu também me apaixonasse por você. - finalmente respondi
- Não, não seria.
- Então não precisa ter medo.
Encarei-o. Vi quando ele sorriu ao ouvir o que eu dizia. A dor já não importava mais.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A luz de inverno.

Formando desenhos abstratos aos olhos, a pista de gelo estava marcada por finas linhas feitas pelos patins brancos. As sete da noite, com uma lua crescente brilhando entre algumas nuvens, que cismavam em se agrupar e manter atrás de si os pontinhos que deveriam iluminar o céu, e o vento cortante que fazia aquela semana, eu me sentei em frente ao garoto que esperava sua vez de patinar.
Ele me observou, com seus olhos grandes e atentos, e então fez menção de dizer alguma coisa, mas logo se aquietou. Fumaça saiu de sua boca em um suspiro sem graça, o calor entrando em contato com o clima gélido.
- Oi. - Falei. Sorri como sempre fazia ao cumprimentá-lo. Ele sorriu de volta e respondeu um oi mudo. Escutei o funcionário do local avisando para o grupo de jovens que estavam na pista que o tempo que eles tinham para patinar havia se esgotado. A pista ficou vazia. As risadas foram sumindo a medida que as pessoas caminhavam para o restaurante do estabelecimento, prontas para tomar chocolate quente e comer biscoitos de baunilha ou simplesmente tomar um bom caldo de carne com uma taça de vinho tinto.
Ele sorriu de novo, olhando-me corar. E então esticou os braços sobre a cabeça, espreguiçando-se, e esfregou as mãos antes de se levantar.
- Você vem? - ele colocou as mãos nos bolsos. Tão natural com tudo aquilo. Fitava-me como quem não esperava nada. O olhar dele sobre mim me apavorava. Fazia-me querer correr e me esconder em algum lugar onde não pudesse ser encontrada.
Fiz que sim com a cabeça e também me levantei. Segui-o até onde o funcionário estava e o observei pedir dois ingressos. Murmurei um trinta e cinco, sem muita empolgação, quando ele perguntou qual era o numero do meu calçado, e agradeci quando ele me entregou um par de patins pequenos comparado com o que ele segurava para si.
Sentamos no banco em frente à pista e calçamos os patins em silencio.
Ele, sempre um passo a frente de mim, terminou de amarrar seus cadarços e se levantou. Parecia já ter feito aquilo muitas vezes. E já o tinha, de fato.
- Onde estão os seus amigos? - perguntei
- Não estão aqui. - a forma que ele falava não soava rude. Ele deslizou sobre o chão de gelo como quem andava sobre as nuvens.
Respirei fundo e fiz meu último laço com muito cuidado. Não por medo de que meus cadarços pudessem desamar e me fizessem cair, mas sim querendo adiar o momento que eu saberia que viria em breve. Como se eu não conhecesse o final daquela história.
Levantei, mantendo meu apoio na grade ao redor da pista. Minhas pernas bambeavam, o gelo escorregava mais do que eu poderia imaginar. Arraste um pé de cada vez, devagar, quantas vezes aquela cena havia se repetido?
- Você quer ajuda? - ele perguntou, rindo da minha falta de jeito, e patinou até mim com uma suavidade que eu não poderia imaginar que ele teria.
Balancei minha cabeça negativamente, fazendo meus cachos se agitarem, disse que eu estava bem, que não precisava, mas ele já estava ali e segurava meu braço, puxando-me de vagar, tentando me manter estável, tão perto que eu podia sentir sua respiração quente em minha pele, seu toque me fazendo estremecer.
Ele aumentava o passo, conduzindo-me junto com ele. Meus pés deslizavam por vontade própria, meus patins deixando suas próprias linhas finas no chão, fazendo seus próprios desenhos abstratos, marcando sua própria história. Nós íamos rápido, eu não poderia parar aquilo, ainda sentia minhas pernas bambearem. Pela proximidade dos corpos, meu coração batia forte.
- Eu vou te soltar, abra os braços e continue deslizando. - ele passou a mão para a minha cintura e eu pude sentir o arrepio que se estendeu por toda minha coluna, e então, empurrou-me para frente, dando impulso para que eu continuasse a patinar.
Eu deslizei por alguns segundos. O vento arranhando o meu rosto, um pouco mais gelado do que antes, fazendo meu cabelo se agitar e seguir seu próprio ritmo.
Olhei para trás. Ele me encarava com um meio sorriso no rosto. Perdi meu equilíbrio dentro daquele olhar. Antes que o chão pudesse me receber, ele segurou minha mão.
Caímos juntos sobre a pista de gelo. As risadas voltaram para aquele lugar, dessa vez, nossas.
- Ei. - sentando sobre o gelo, ele me chamou - Pegue.
Usei meus cotovelos para me sentar. No meio de nós dois, entre as linhas formadas pelos patins de alguém, uma flor amarela crescia. Tinha o cheiro adocicado de mel e todo o mistério que podia ter uma flor de inverno, no meio de uma pista de patinação, criada sobre um lago congelado.
Ele a colheu e estendeu em minha direção. Segurei-a entre os meus dedos, intrigada de mais para falar qualquer coisa.
- A propósito, seu nariz está sangrando.
Uma gota de sangue escorreu por minha pele e pingou no chão. Tudo se escureceu, olhei para o céu, confusa, agora as nuvens escondiam também a meia-lua e todo o resto se esvaía para longe de mim...
O vermelho tingia o branco aos poucos, pingo por pingo, e entre as pétalas amarelas de um momento de luz e os olhos curiosos do garoto, eu acordei.
O relógio marcava cinco horas e alguns minutos da manhã. Entrava pela janela um vento frio e cortante, e entre as cobertas eu me encolhia mais e mais. Aos próximos minutos do dia, o sol se lançava fraco, derretendo a neve que se formara de noite. Em minha cintura eu ainda podia sentir o arrepio e o estremecer do meu corpo a cada toque... E em minha mão eu ainda segurava uma flor amarela.